Saneamento básico tem solução

17/12/2021

IDS Opina com Marussia Whately

Por Aline Souza – Jornalista e Comunicadora no IDS

O IDS OPina de dezembro aborda a necessidade de ver o direito humano à água e esgotamento sanitário como política pública e construído de baixo para cima. Essa é a opinião de Marussia Whately, arquiteta e urbanista, diretora do IAS – Instituto Água e Saneamento a associada do IDS. É idealizadora da Aliança pela Água, rede com mais de 80 organizações da sociedade criada em 2014 para enfrentamento da crise hídrica de São Paulo. Maru também é autora de diversas publicações, entre elas o livro: “Século da Escassez”. Uma nova cultura de cuidado com a água: impasses e desafios”, Companhia das Letras, 2016.

Conversamos sobre segurança hídrica, saneamento, cidades e governança relacionadas a estes temas.

Confira!

IDS A pandemia da COVID-19 mostrou a desigualdade no acesso à água e ao esgotamento sanitário em todo o mundo, principalmente nos países periféricos do sul global.

O Brasil tem hoje 52% da população sem esgotamento sanitário adequado, embora a ONU reconheça o acesso à água e esgotamento como um Direito Humano. Na sua opinião, quais são os principais entraves que impedem o avanço do acesso à água e serviços de saneamento para nossa população? 

Maru – Quando a gente fala de acesso a saneamento temos que nos lembrar que o Brasil é um país de dimensões continentais com uma diversidade muito grande de camadas sociais, ambientais e econômicas. Para entender os entraves, precisamos olhar a questão do saneamento relacionada com o território, pois o déficit de saneamento no Brasil ocorre de diferentes modos, não é homogêneo.  Por exemplo, temos muita sorte de ser um país com grande quantidade de rios, mas 12% da água doce está concentrada na Amazônia e não temos oferta volumosa em relação à água em outros lugares. Existe desigualdade entre as regiões brasileiras, estados e municípios e também entre população rural e urbana. 

Em 2020 o IAS lançou uma publicação sobre os 10 obstáculos para avançar no saneamento básico e uma das questões que avançamos tem a ver com o olhar e o entendimento estrutural de que saneamento precisa ter o status de política pública assim como a saúde pública, o ensino público. O Brasil não tem uma política nacional, uma lei que rege o setor de saneamento criando um sistema único e integrado para a população acessar esse direito como tem leis que criam SUS – Sistema Único de Saúde, por exemplo. O que temos é uma lista de diretrizes e essa falta de visão estrutural gera consequências, até porque saneamento é algo que deve ser contínuo e a longo prazo, por isso deve ser tratado como política. 

E ainda olhando para o território, a governança do saneamento também é mal resolvida. É no território que os rios são poluídos e é lá que quando tem enchentes a população fica sem água e sem energia elétrica. Então um dos entraves é que as responsabilidades entre os entes (Estados, Agências Reguladoras, Municípios) são fragmentadas e não está evidente o que cada um faz. Essa é uma herança que temos desde a década de 1970 com o PLANASA e a criação das CIAs Estaduais de Saneamento.

Nosso modelo é antigo na concepção de projeto de saneamento, que  ainda é muito voltado para grandes obras de esgotamento. Nesse ponto a questão das moradias precárias é relevante. Por consequência é enorme o déficit de acesso à água potável (ligado ao direito humano), muito maior que o déficit de atendimento, que aponta a quantidade de pessoas numa área de atendimento, mas não necessariamente ao acesso. Muita gente não tem água encanada, não acessa nenhuma solução de saneamento mesmo estando em uma área coberta pelo atendimento de uma companhia prestadora.

Então, existem os entraves da falta de visão em relação à política pública, entraves de governança e gestão e também da prestação de serviços. A gestão e fiscalização pode ser compartilhada e a prestação tem vários modelos, inclusive o modelo privatizo desde 1990. Os municípios não deveriam se furtar de pensar a política municipal de saneamento olhando para os componentes água, esgoto, drenagem e resíduo cruzando isso com meio ambiente e adaptação climática, eles deveriam ser protagonistas.

IDS – E como fica o Saneamento após o Marco Legal (Lei 14.026/2020)? Pode explicar para nós um pouco mais sobre a legislação vigente?

A chamada Lei do Novo Marco Legal do Saneamento, não é “nova”, pois não revoga a lei anterior, tem poucos artigos, mas muda muitos dispositivos anteriores. Com ela ocorre uma mudança nas atribuições federais em relação a saneamento para governança e também repete aquilo que não foi implementado na prática até hoje. Um dos entraves relacionados à governança tem a ver com regulação, diretrizes e normas de referências, que quando existem, ajudam avançar com os serviços públicos de saneamento.

O Brasil tem poucas agências reguladoras, muitos municípios com lacunas na regulação. A Agência Nacional de Águas – ANA, a partir do Marco Legal, deve definir as normas para regular o saneamento, mas na prática não está acontecendo. Essa lei também impacta a gestão de serviços públicos de saneamento e cria um Comitê Interministerial de Saneamento sem participação da sociedade civil, portanto, sem controle social, algo muito comum nesse atual governo. 

Outro ponto a se destacar é uma característica desta lei de ampliar e incentivar o aumento da participação privada. Dificilmente só o poder público vai resolver a questão do saneamento. O cenário mais provável é ter empresas que irão acessar os recursos públicos para construir a infraestrutura, com isso a lei cria possibilidades para maior presença do setor privado, o que não significa sair privatizando as companhias estaduais, que possuem perfis diferentes entre cada uma. 

A lei tem uma meta para água e esgoto priorizada, voltando ao modelo que se tinha na década de 1970, mas não tem um guia para se atingir essa meta que foi definida em 2013 e não teve seu prazo atualizado. Se não trabalhar de modo integrado com o território e suas águas fluviais, algo que envolve a geração de lixo (resíduos sólidos), por exemplo, será uma meta incompleta que não vai melhorar a qualidade ambiental daquele lugar e nem incluir as pessoas excluídas desse serviço hoje. A meta prevê que até 2033 o Brasil tenha 99% de abastecimento de água e 90% para tratamento de esgoto. É muito ambiciosa. Mas se daqui a 12 anos não atingirmos a meta, a Lei passa a não valer mais? 

A Lei do Marco Legal não teve debate público, não atualizou o prazo da meta e não tem muito embasamento técnico. É uma Lei desafiadora sem diretriz federal para integrar os entes e de fato implementar de forma integrada no Brasil o saneamento básico. Mantém o vácuo entre regiões e estados e não cria projetos consistentes de investimento em infraestrutura. Enfraquece os municípios como protagonistas na sua capacidade de implementar suas políticas, liberando-os de fazer seus planos de saneamento e não fala de crise hídrica. Ou seja: temos pouco a celebrar!

IDS – Não podemos deixar de tocar no ponto sobre a relação entre a saúde menstrual e as consequências sociais e psicológicas para as mulheres que não acessam banheiros com qualidade. Sem contar o imenso contingente de pessoas em situação de rua nas cidades do Brasil. Pode explicar para nós como isso impacta a saúde e o desenvolvimento das mulheres e meninas?

Maru – As várias desigualdades sociais do saneamento, começando pela falta de banheiro, têm um impacto muito negativo para as mulheres. No aspecto educacional, existe uma realidade cruel em lugares do Brasil onde meninas não frequentam a escola por precisar ir buscar água distante de suas casas. Sabemos que maiormente são as mulheres as responsáveis pelo cuidado com suas famílias, muitas trabalhadoras dos centros urbanos, após a jornada diária, chegam em casa e ainda precisam lidar com trabalho doméstico muitas vezes sem água. Elas não possuem tempo para investir em capacitação profissional, por exemplo. 

 Outro aspecto é o da saúde, além da higiene pessoal precarizada que o não acesso ao banheiro impõe às mulheres, existe a proliferação de doenças transmitidas por insetos, como o surto de chikungunya e microcefalia que impactou principalmente as mulheres gestantes e pobres. A falta de acesso seguro a banheiros e produtos de higiene piora a qualidade de vida, de dignidade e de oportunidade. 

Saneamento precisa ser visto como política pública porque é uma demanda que está muito próxima das pessoas. Garantir acesso sem discriminação, progressivo, adequado são diretrizes que conversam com o conceito de segurança hídrica. Cada vez mais precisamos olhar o saneamento aproximando a saúde e bem estar das pessoas. A falta dele afeta diferentes dimensões na vida, condições para estudar, trabalhar e se desenvolver. Divide as pessoas em dois mundos, quem tem e quem não tem

IDS – A questão do Licenciamento Ambiental está intrinsecamente ligada à preservação das margens de rios, das nascentes e das Áreas de Preservação Permanente- APPs. Além disso, as cidades brasileiras estão precisando buscar água cada vez mais longe, sem falar na crise hídrica causada pelo desmatamento e consequente redução das chuvas. Como você vê a questão do uso de recursos financeiros oriundos da tarifa de água para investimentos na preservação de mananciais e reservatórios?    

Maru – A água é insumo para o setor de saneamento. Não há como descolar a crise hídrica e a oferta da água no território. O setor olha muito pouco para isso. A tarifa é um recurso muito importante quando não há a visão de política pública para o saneamento. A falta de uma visão do saneamento como política pública ocasiona a não prioridade de orçamento para este fim, o que torna ainda mais relevante o uso de parte da tarifa para investimentos em preservação. Para se ter uma ideia, os subsídios fiscais e econômicos para combustível fóssil são da ordem de mais 120 bilhões/ano, então não é uma questão de falta de dinheiro, mas falta de priorização.  Há locais de maior concentração de população rural, onde não há política de saneamento rural como o programa de cisternas que foi muito efetivo e reconhecido pela ONU para a questão da segurança hídrica. Hoje praticamente está extinto.

Ainda estamos vivendo o modelo do século XIX,  ultrapassado para o uso de recursos naturais e que não está preparado para os eventos climáticos e mudanças extremas do ciclo hidrológico, seja pela falta de água ou abundância dela. Água e clima são indissociáveis e não pensar isso é não pensar na saúde da água, ou seja, ter uma abordagem circular para lidar com saneamento, diversificar as fontes de água, reutilizar a água, captar a água da chuva e reduzir as enchentes, tudo isso são ações fundamentais. Não dá para pensar em abastecimento contando com a sorte de que vai chover. Estamos acabando com florestas e com as Áreas de Preservação Permanentes – APPs e com isso estamos acabando com as áreas onde a água se renova, onde ela é cíclica. É um modelo suicida de retrocesso em toda legislação ambiental.

IDS – O debate sobre saneamento precisa se aproximar da discussão climática, da adaptação e da criação de resiliência. Quando a OMS decretou a pandemia global de COVID 19 com a ordem de lavar as mãos, percebemos que essa era uma orientação pouco democrática. Qual é a sua leitura sobre a relação entre a democracia e a sustentabilidade no que tange o acesso a água e saneamento? Como a gente avança para superar esse desafio perante a emergência climática? Saneamento tem Solução?

Maru – Direito humano e segurança hídrica são diretrizes fundamentais. As organizações da sociedade civil estudaram e já propuseram um caminho. Solução há. Mas estamos indo no caminho contrário, diminuindo controle social, tendo menos transparência e não vinculando questões fundamentais ao saneamento como acabar com o desmatamento ilegal urgentemente. Saneamento como política pública, sendo construído de baixo para cima, priorizando quem não tem acesso e considerando toda a diversidade das cidades e as diferentes formas para lidar com seus territórios, isso será decisivo para o bem estar nos próximos anos tendo em vista a crise climática. É preciso planejar melhor a nossa relação com água, ter um olhar mais séc XXI para saneamento básico, pois com menos água, precisamos usar melhor a água. 

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