O garimpo muito além do ouro

08/03/2023

Com a emergência social, ambiental e sanitária provocada pela presença de mais de 30 mil garimpeiros minerando ouro e cassiterita em terras do povo yanomami, em Roraima, o tema garimpo voltou às primeiras páginas. Desde os tempos da exploração de ouro em Serra Pelada, no Pará, na década de 1980, o tema não ganha tanto destaque no diálogo público. A imagem do enorme formigueiro humano viajou o mundo e praticamente desapareceu das pautas dos jornais, até que outras imagens – desta vez de indígenas famélicos e doentes convivendo com a devastação causada pelo garimpo em suas terras – tomaram as manchetes de jornais, sites e redes sociais.

IDS Opina conversou com o advogado, ambientalista e diretor do Instituto Escolhas, Sergio Leitão. Ele também foi diretor de Políticas Públicas e diretor de Campanhas do Greenpeace no Brasil, fundador e diretor-executivo do Instituto Socioambiental (ISA), assessor para temas sociais e ambientais do Ministro da Justiça, José Gregori, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. E trabalhou com o cardeal Aloísio Lorscheider como assessor para temas sociais da Arquidiocese de Fortaleza (Ceará). 

O diálogo com Sergio Leitão girou em torno da exploração ilegal de ouro e outros minerais em territórios indígenas e como são encontradas brechas para que esses minérios sejam comercializados legalmente no Brasil e no exterior. Para ele, o cenário deve ser compreendido em sua complexidade. Ou seja, além de entender o problema imediato que é a tragédia humanitária e ambiental que recaiu sobre as terras indígenas do Brasil, principalmente a terra indígena yanomami, é preciso entender as causas do problema, o que o provoca. E alerta que, do contrário, o problema continuará acontecendo. “Apesar de ser um problema que vem acontecendo desde sempre, o que se tem hoje é um sistema que estimula a expansão desmedida daquilo que se chama de garimpo no Brasil, e garimpo não mais o é”. 

Leitão explica que garimpo na imagem popular é aquele garimpeiro com uma peneira, uma bateia na mão, ali separando o ouro dos rejeitos, da terra e da água do rio. “A estrutura do garimpo hoje na Amazônia não permite mais que a gente a chame assim, porque é uma estrutura empresarial, mecanizada, com conexão com o sistema financeiro, que faz a compra do ouro, que é enviado para fora do Brasil, ou seja, é uma estrutura altamente complexa, envolvendo milhões de reais”, explica. 

Essa estrutura, que envolve diversos atores e que vai muito além daqueles que trabalham para retirar o ouro na terra, garante a operação que já está espalhada por uma área de extração muito maior do que toda a área de mineração industrial no Brasil. O ambientalista explica que 98% de todo o garimpo na Amazônia é ouro e é ele que movimenta essa grande máquina de destruição. Hoje, segundo ele, a atenção está sobre as terras indígenas dos yanomami, mas esse crime está espalhado, especialmente no Pará, onde o povo munduruku também enfrenta invasões.

“Se a gente não remover da legislação os textos que são incentivo dessa máquina de destruição, essa situação não terá fim”, diz Leitão. Seu alerta tem foco na legislação que regula compra e venda de ouro no Brasil, que são protegidas por um princípio chamado de “boa fé”. Exemplificando: um garimpeiro chega para vender o ouro e declara que tirou o metal de um lugar legal. O comprador acredita de boa fé nessa declaração e, a partir daí, o ouro segue seu caminho pelo mercado como um ativo legalizado. E tudo isso ainda é feito em papel, em um mundo digitalizado, o controle do comércio de ouro no país é escriturado em papel, dificultando o trabalho de fiscalização.

Leitão aponta essa distorção como um dos estímulos para as ilegalidades: “Esse sistema, a partir da questão da ‘boa fé’, criou um estímulo poderoso, todas as notas fiscais da venda de ouro são de papel. Imagina que você vai na padaria comprar dois pãezinhos, toma um café, a nota fiscal é feita na hora, eletrônica”. Ele conta que a nota fiscal do ouro que movimenta bilhões é em papel, por uma instrução normativa de 2001, do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que fala do papel carbonado. “O pessoal de menos de 40 anos nunca ouviu falar nisso”. 

Essa estrutura legislativa foi feita para encorajar, e responde pelo fato de que o garimpo, com esta visão do passado, cresceu enormemente em várias terras indígenas. E deixa danos ambientais para ninguém recuperar. Ele destaca que é importante mostrar que a dinâmica de destruição do garimpo é diferente de  quando se desmata uma área para criar boi: “se ele for embora daqui uns anos, a área se recupera, a floresta cresce, há uma regeneração natural. O garimpo é uma ferida que nunca cicatriza. Se você não for lá e de maneira diligente fizer uma recuperação, ela não acontece”. É uma destruição ambiental que não se recupera por uma ação meramente de descanso da natureza, como acontece com outros tipos de desmatamento. 

Sérgio Leitão gosta de repetir o mantra: “Ou o Brasil acaba com o garimpo, ou o garimpo acaba com a Amazônia”. 

Para ele, o garimpo é a saúva, o gafanhoto, o invasor, o tanque de guerra. Ele virou uma espécie de bomba atômica na Amazônia, uma destruição sem fim e sem controle. E explica que a legislação brasileira é tão leniente que não tem contrabando. “Do ouro brasileiro, 100% é exportado, segundo os dados oficiais”. Ele explica que o que há é um esquema perfeito de lavagem do ouro extraído dentro de terras indígenas. “Esse é o nosso drama. Como esse sistema acontece: tudo é em papel, a nota fiscal é em papel e a Agência Nacional de Mineração, a ANM, concede as permissões de lavras garimpeiras, uma autorização para que você vá lá e retire ouro de uma determinada área. Na prática, invade-se uma terra indígena, retira-se o ouro e você tem um cadastro de papel com as autorizações para explorar o ouro em uma área qualquer, o titular dessa permissão não está usando aquela área para tirar ouro, mas ele usa para lavar o ouro que ele retirou da terra indígena”. 

Leitão aponta que o Instituto Escolhas realizou um estudo chamado Raio-X do Ouro, no qual 40 mil registros de comercialização foram checados no período entre 2015 e 2020. O que se apurou é que 220 toneladas de ouro, praticamente metade da produção brasileira no período, foi completamente ilegal.

O estudo mostrou que não existe contrabando do metal, pelo contrário, o sistema está tão protegido que o sujeito paga a contribuição exigida pela lei brasileira para a mineração, que é a CFEM (Compensação Financeira pela Exploração Mineral). Leitão comenta que há, inclusive, um crescimento de arrecadação da CFEM, “porque é uma das maneiras de fazer a lavagem com tudo bonitinho”. 

O comércio internacional de ouro

O ouro ocupa um lugar na balança comercial do país, mesmo com todo esse conteúdo de ilegalidade. Do comércio bilateral entre Brasil e Suíça, 75% é de ouro, e entre o Brasil e o Reino Unido, 25%”. Logo, esse conteúdo de ilegalidade de metade da produção brasileira de ouro está sendo exportado junto com o sofrimento, as lágrimas e o sangue dos nossos povos indígenas”. 

Para Leitão, o Brasil tem que tomar a decisão se vai continuar fingindo que acredita que esse garimpeiro é o mesmo dos livros de história ou é uma estrutura empresarial, com sedes em Dubai, nos Emirados Árabes, que têm complexos de logística que envolvem refinaria do ouro, empresa de helicópteros, de aeronaves, escritórios na Faria Lima, ou seja, uma estrutura que se beneficia de uma legislação pensada para um pequeno garimpeiro que já não existe mais. 

“Vamos mudar a lei”

“Nós temos tido conversas com o novo governo para demolir, destruir esse aparato legislativo que confere esse poder de legalidade às atividades ilegais de ouro na Amazônia”. Ele conta que, em 23 de janeiro, esteve com o secretário da Receita Federal para dizer: “Você viu o presidente indo para Roraima e nós viemos aqui tratar de uma parte que te cabe nesse problema, que é resolver a questão da nota fiscal, revogar essa instrução normativa de 2001 e criar a exigência da nota fiscal eletrônica”. 

A situação da fiscalização do ouro apreendido por policiais federais chega a ser ridícula, diz o ambientalista: “o delegado da Policia Federal apreende um ouro ilegal e depois ele tem que ficar na frente do computador digitando as notas fiscais”. Não tem como fazer o controle com os outros bancos de dados, isso cria uma dificuldade operacional imensa e se perde o controle efetivo daquilo que está acontecendo. 

Ao ministro Flávio Dino, da Justiça, foi pedido que  se faça a exigência da criação de notas de transporte, que permita o rastreamento de todo o passeio do ouro, desde o momento em que é extraído na Amazônia até o momento em que é exportado para outro país. E também foi solicitado que o Banco Central atue sobre as empresas autorizadas a comprar ouro, as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliário, as DTVMs, que são instituições do sistema financeiro. “Se o Banco Central cria e permite o funcionamento dessas empresas, ele tem que fazer a parte de fiscalização”, diz Leitão.

Para Leitão, a expectativa sobre o novo governo é positiva para as mudanças necessárias. “Sabemos da pressão e resistência que o garimpo ou seus representantes conseguem fazer, mas o drama dos Yanomami mostrado para o Brasil e o mundo inteiro tem o apelo necessário para que a gente remova esse tipo de proteção que é a razão principal de se ter o garimpo hoje na Amazônia completamente sem controle”, conclui. 

Assista a entrevista completa!

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