14/10/2021
A entrevistada do IDS Opina de outubro é a jornalista e ambientalista Adriana Ramos, associada do IDS e uma das mais importantes vozes do campo socioambiental atuante em políticas públicas há mais de 25 anos. Adriana coordenou o Grupo de Trabalho de Florestas do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – FBOMS e foi secretária executiva do Fórum Amazônia Sustentável.
Conversamos sobre a visão negacionista na pauta ambiental, as políticas socioambientais no contexto dos povos indígenas e comunidades tradicionais e as práticas coloniais que nunca nos deixou. Atualmente Adriana é coordenadora de Política e Direito do Instituto Socioambiental – ISA.
Confira!
Adriana – A mudança de entendimento é real e está associada a uma noção recente de emergência climática, pois sempre se pensou nessa emergência como coisa do futuro, mas agora estamos vendo que ela acontece aqui e agora e a natureza tem sido muito efetiva em nos mostrar isso. No entanto, eu não acho que essa emergência se traduza em uma mudança de paradigma real do ponto de vista da ação, a maior parte dos tomadores de decisão estão tentando fazer ajustes no “business as usual” para manter o paradigma econômico que já se conhece, sem ter a intenção de realmente fazer essa mudança radical no modus operandi da sociedade. Isso implica abrir mão de certas atividades econômicas para garantir o futuro comum, o que ainda não aconteceu.
Adriana – A situação de emergência climática demonstra que se a gente não cuidar de garantir a existência coletiva em um ambiente saudável, vamos fracassar como sociedade em muito pouco tempo. Portanto, quando a gente pensa em decisões importantes no campo ambiental, essas decisões fazem diferença na vida de todos. Não podemos pensar em democracia plena se as decisões relacionadas a essa temática não são compartilhadas pela sociedade e tomadas à luz do interesse da população.
Quando uma parcela privilegiada da sociedade toma decisões que geram grandes impactos e eles recaem apenas sobre alguns que não participam dessas decisões, aí ocorre o que chamamos de “injustiça climática”. Não podemos falar em democracia se o interesse de todos não estiver sendo considerado no processo político e infelizmente no contexto nacional isso não é levado em conta. No Brasil nós vemos uma parcela minoritária da população que representa o setor rural na Câmara dos Deputados tomando as decisões que afetam negativamente as pessoas e sem que elas saibam muitas vezes.
Um bom exemplo é o Projeto de Lei (PL) 2168/2021 criado em função da crise hídrica que permite o barramento dos rios para uso prioritário da água potável disponível para irrigação e dessedentação animal em detrimento das populações humanas como se isso pudesse ser visto como utilidade pública, algo que deveria estar em segundo plano. E estamos falando de um setor que já acumula o recurso hídrico em suas atividades, pois 70% da água já é destinada à irrigação podendo agora se beneficiar ainda mais com o PL. O futuro depende de uma democracia ambiental que está distante de nossa realidade.
Adriana – O desafio é convencer as pessoas a nos apoiar nas redes e mobilizar a opinião pública. Nós estamos diante um momento que precisamos radicalizar o nosso papel. Tanto no sentido da denúncia, ou seja, denunciar a falta de transparência, a ausência dos espaços democráticos, as decisões que privilegiam apenas alguns setores, as perseguições individuais aos representantes da ciência e demonstrar para a sociedade isso. Além disso, dar ainda mais visibilidade às experiências que estamos desenvolvendo para enfrentar essas questões enquanto sociedade nas últimas décadas. Temos inúmeras experiências boas de produção sustentável, de projetos alternativos de economia circular, para restauração florestal, etc. É preciso radicalizar.. não temos mais tempo. As políticas socioambientais brasileiras, construídas desde a década de 1980 e responsáveis pela posição de destaque do Brasil internacionalmente, estão em xeque. Não podemos mais apenas esperar que exista a consciência dos tomadores de decisão.
Temos que ser mais ativos nessas duas frentes que eu considero fundamentais como papel da sociedade civil. O papel da denúncia e da defesa da resistência e o papel de tornar visível os caminhos possíveis de soluções dos problemas, caminhos que podem nos tirar do mata burro. É muito urgente e precisamos acreditar que é possível fazer de outra maneira. Do contrário, para onde vamos? Cada vez mais devemos esticar a corda para que essas elites financeiras, proprietária do setor produtivo compreenda isso e adotem soluções que resguardem a sustentabilidade futura.
Adriana – Os direitos indígenas são assegurados na Constituição de 1988 no Brasil e foram estabelecidos sob uma perspectiva de que somos um país plural formado por diferentes grupos sociais com diferentes culturas e modos de viver, ou seja, imenso repertório cultural. A nossa diversidade também é um valor que o país tem, um repertório vasto de possibilidades para pensar alternativas sustentáveis. Existe sim um atraso do Brasil em fazer esses direitos valerem, ainda estamos correndo atrás dos fundamentos da Constituição que não estão implementados e consolidados.
Os povos indígenas já demonstraram uma enorme capacidade de conservação de nossas florestas e isso é um ativo importante do nosso país para manter a maior floresta tropical do planeta em pé. Além disso, existem a compensação pelos serviços ambientais, a importância da floresta para captura do carbono. Sem sombra de dúvida a floresta é um bem e a forma como os povos indígenas vivem garante a manutenção da floresta, a saúde dos ecossistemas, eles são nossos maiores aliados naquilo que estamos buscando e ganham relevância ainda maior no momento atual.
Estão ocorrendo ações coordenadas nas instâncias dos três poderes que tentam minar de todas as formas os direitos e a resistência indígena. Infelizmente ainda existe uma visão mesquinha no debate político daqueles que são os donos de terra, que conseguiram a titularidade do terreno, em eleger os indígenas e seus direitos como seus inimigos. Existe uma parcela grande de ruralistas que querem roubar o território indígena, sempre tiveram esse olhar para o território deles. É preciso entender a importância desses povos também pelo papel que essas populações cumprem para o bem maior do nosso país, afinal, a produção agrícola depende das chuvas, que por sua vez dependem da Amazônia e da manutenção da floresta para regulação do clima global. Manter terras indígenas é a coisa mais barata (e inteligente) que se pode fazer para capturar carbono e conservar a floresta.
Adriana – É surreal e sintomático os bilionários da Terra estarem investindo em foguetes para Marte. Os especialistas dizem que deveríamos tomar medidas urgentes agora para dar tempo de reverter. No entanto, o Brasil está na contramão e eu espero que muito em breve a gente possa parar de retroceder para avançar, mas acho que isso ainda vai demorar. E o prejuízo que tivemos nos últimos três, quatro anos é tão grave que pode ser irreversível. Vamos ter que reconstruir muita coisa depois que esse governo sair daqui um ano e a frase do atual ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, em uma reunião com a bancada ruralista sobre o debate da COP 26 ser sobre a redução dos gases de efeito estufa e portanto nada tem a ver com desmatamento, mostra a situação de limbo em que a gente se encontra.
Daria tempo se a gente não estivesse andando para trás, ou seja, nós temos inimigos internos, existe uma base de autossabotagem no Brasil , uma cultura política que não privilegia as melhores cabeças do país nas decisões. Quando se fala em elite a gente logo imagina o melhor, mas a burguesia que aqui existe é perigosa e nefasta para o país manipulando as leis e colocando no poder os governantes que governam por interesses privados. O negacionismo cumpre uma função que é justificar as decisões que não serão tomadas, negar o aquecimento global é confortável. O setor ruralista é tão atrasado que não enxerga o benefício ambiental das florestas para sua atividade econômica. O Brasil ainda é dominado pelas decisões baseadas no direito de propriedade e não com vistas em uma produtividade sustentável a longo prazo que beneficie a economia como um todo. É o valor da terra que conta, a propriedade da terra é que dita as decisões.
O discurso oficial do Brasil para o mundo é desconectado da realidade, um período obscuro da nossa história paira sobre nós. O dinheiro não vai comprar tudo que nos faltará. A minha esperança é que a COP 26 ainda seja um momento salutar para apresentar outras visões da sociedade civil para o meio ambiente e inspirar mais a cooperação entre as partes nesse sentido. Não serão as mesmas pessoas que nos trouxeram até aqui que irão nos tirar dessa. Quem nos trouxe até o problema continua nos afogando para encontrar solução. Precisamos mudar o espaço de tomada de decisão para outras vozes até hoje não escutadas. E nesse sentido o ecofeminismo e os povos originários, com uma visão mais integrada e disruptiva do mundo, têm muito a contribuir.
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