Novo governo tem de recuperar a esperança na educação

25/11/2022

O Brasil enfrenta o desafio de superar uma herança de 10 anos de atraso na educação nos próximos anos. A educadora Maria Alice Setubal lança uma luz sobre a educação para o IDS Opina.

IDS Opina conversa com Maria Alice Setubal, mais conhecida entre os amigos e parceiros das organizações sociais como Neca Setubal. A recém convidada para fazer parte do Governo de Transição no grupo da Educação, é uma ativista de longa data nesta área. Graduada em ciências sociais pela USP, mestre em ciência política e doutora em psicologia pela PUC, Neca é  presidente do Conselho Curador da Fundação Tide Setubal, é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que tem como missão “Fomentar iniciativas que promovam a justiça social e o desenvolvimento sustentável de periferias urbanas e contribuam para o enfrentamento das desigualdades socioespaciais das grandes cidades, em articulação com diversos agentes da sociedade civil, de instituições de pesquisa, do Estado e do  mercado”.

Nessa conversa com o jornalista Dal Marcondes para o IDS Opina, ela fala sobre as dificuldades do atual momento para a educação brasileira depois de dois anos de pandemia da Covid 19. Neca ressalta que a Covid piorou muito o que já estava ruim. O desafio é avançar muito rapidamente para que o Brasil não perca mais décadas e gerações em educação. E ressalta que é um enorme desafio não só para os profissionais, militantes na educação, mas para toda a sociedade brasileira.

A pesquisadora e ativista deixa claro que a partir dos governos democráticos a sociedade brasileira e seus governos fizeram um enorme esforço para colocar todas as crianças na escola, universalizar o ensino fundamental, educação infantil, creches e até o final do ensino médio. Foi uma série de iniciativas a partir do governo do Fernando Henrique, com o governo Lula dando um salto muito grande, especialmente com o ministro Fernando Haddad na área da educação e depois continuando com a Dilma. 

50 anos de atraso

Enquanto alguns países da Europa, EUA e Coreia já tinham resolvido suas questões ou tinham dado grandes saltos na década de 1970 no ensino médio, o Brasil não fez a mesma opção na época. Nós chegamos na década de 90 com um déficit de escolaridade muito grande. Ainda precisamos pensar em educação de qualidade para todos.  A educação vinha em ascensão no governo Lula, de 5º série, 9º ano, havia uma melhora na média do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Já no governo Temer a educação perdeu relevância em Brasília. Mas foi a partir do governo do Bolsonaro que a coisa degringolou, tivemos 5 ministros da educação e nenhuma política que pudéssemos chamar de política de educação para o Brasil como um todo. 

Foram iniciativas fragmentadas e o Ministério da Educação (MEC) não exerceu a sua função de formulador de políticas públicas. Pelo contrário, se enfraqueceu e algumas secretarias foram eliminadas com a SECADI, que era uma secretaria de diversidade e inclusão. Criaram a secretaria de alfabetização, chegaram a elaborar uma política que não conseguiu ser implementada. A pandemia atrapalhou muito, mas não foi só ela. Não houve coordenação.

Os últimos 4 anos foram anos desastrosos para a educação. Se já tínhamos questões de qualidade, isso andou muito para trás, pela falta de políticas, pela falta de coordenação de um órgão formulador como o MEC. Ele precisaria coordenar os estados e municípios, que são os responsáveis pela maior parte da responsabilidade pela ponta, os professores e as escolas.

Nesta estrutura toda a pandemia foi um “Deus nos acuda”. Ela trouxe problemas para o mundo inteiro. Questões de déficit de aprendizagem, de retrocesso de um ou dois anos que aconteceram em quase todos os países do mundo. Mas, no Brasil, os estudiosos colocam que tivemos um retrocesso de no mínimo 10 anos. Quando olhamos todos os problemas deixados pela pandemia encontramos questões estruturantes, temos enormes desigualdades, nem todos tinham acesso a celular e quando tinham era um por família. É uma ilusão completa imaginar que ensino a distância poderia alcançar todos. 

Dois anos de abandono

Os professores fizeram um enorme esforço para poder fazer alguma coisa. Tivemos redes de ensino que ficaram mais de ano fechadas. Tem vários municípios, que fiquei sabendo pela UNICEF, que começaram suas aulas agora em agosto de 2022, sendo que tinham parado em março de 2020. As desigualdades saltaram aos olhos, a falta de conectividade de internet nas periferias, nas escolas, nas favelas. E uma falta total de coordenação. Em alguns lugares por enorme esforço dos professores e às vezes da sua secretaria de educação, puderam fazer alguma coisa. Mas no geral é um enorme desastre. Estamos em uma situação dramática no Ministério da Educação. 

A reconstrução da educação no Brasil será uma tarefa árdua que vai exigir esforços não só dos ministérios, mas de toda a sociedade brasileira e certamente de uma política que define que educação é prioridade. Uma dificuldade será integrar os esforços do Ministério da Educação com governos estaduais que não estarão alinhados ao governo federal. 

Faço parte de um grupo de estudos que pensa a transição na área de educação. E os desafios são enormes, eu os coloco em três grandes frentes: primeira é a reestruturação do Ministério da Educação, das secretarias e de toda a estrutura de modo que seja um ministério forte, de formulação de políticas, indução e consiga coordenar os estados e municípios. 

Sistema Nacional de Educação

Para isto temos que começar imediatamente com a criação de um sistema nacional de educação. Nós não temos, temos o FUNDEB que é um fundo que consegue mediar os recursos da educação entre os estados e municípios, mas que ainda está muito aquém da possibilidade de uma articulação efetiva que é o que precisamos neste momento. 

O segundo eixo é impedir novos retrocessos e avançar no que já conseguimos de políticas já desenhadas e que estão paradas. Impedir o retrocesso é importante porque temos muitos governos estaduais eleitos em sintonia com o atual governo. Eles podem muito bem se alinhar nas políticas se tivermos um MEC forte e articulador. 

Dentro deste bloco de aprendizado, a questão da alfabetização é crucial. Tivemos crianças que passaram do terceiro para o sexto sem estar alfabetizadas completamente. É trágico porque o professor do sexto ano não quer e nem sabe alfabetizar. Alfabetização é questão da educação infantil e a formação dos professores é fundamental. Atualmente mais de 70% dos cursos de formação nessa área são EAD e com grande parte com graves deficiências no ensino. O Lula está falando de escola de tempo integral, isso seria maravilhoso, traz outra qualidade na educação.

Na área do ensino médio a reforma foi atabalhoada, cheia de problemas, e precisa ser revista.

Desigualdade educacional, desigualdade social

O terceiro ponto é a importância que todas as políticas, os diagnósticos que serão feitos agora para o próximo ministro tenha um olhar para as desigualdades educacionais, não se pode mais atuar mais com médias. A média pode fazer com os que são melhores vão melhorando, mas os abaixo da média pioram ainda mais. Temos que tratar as desigualdades econômicas, raciais e de gênero. 

O modelo mais simples de entender é o do SUS – Sistema único de Saúde onde você define com clareza os papéis e responsabilidade de cada ente federal, estadual e municipal. Hoje, muitas políticas vão direto para escola e não passam pelo município ou vão diretamente para o município estando desarticulada do estado. Tem um acúmulo de sobreposição de políticas em um mesmo município ou escola. Existe uma desarticulação, não existe uma clareza da importância do MEC para além do balcão do FNDE. 

A força da Sociedade Civil

Sou bem positiva, temos uma militância na área da educação de pessoas que realmente acreditam na educação. A capacidade que temos de reconstrução e de conseguir tirar 10 anos de atraso em 10 anos é alta. Dá para fazer. Contudo, é um desafio enorme, que a educação sozinha não dá conta. Um estudo de economistas brasileiros que estão na universidade de Zurique, mostrou que alunos oriundos de um padrão superior de educação que vem de uma classe média alta ou ambientes e contexto enriquecedoras ganham muito mais do que estudantes que saem de uma periferia e vão para o mercado de trabalho. Não adianta achar que os alunos vão aprender sozinhos quando a gente tem 80% da população em escola pública, sendo que em torno de 50% estão em alta vulnerabilidade. Se não tivermos professores capacitados não haverá milagre. Não estamos no nível de auto aprendizado, quando o aluno busca e aprende sozinho. Alguns terão essa capacidade, mas são poucos. 

Tivemos programas de formação para os professores que juntavam as universidades públicas com as escolas do sistema público, com bolsa de estudo para fazer os estágios. Desta forma, se consegue uma capacitação mais consistente do professor. 

E por fim, outro ponto importante é que os diretores das escolas sejam selecionados a partir de critérios técnicos porque hoje cerca de 85% dos diretores são nomeados politicamente. Isso torna a escola disfuncional.

Assista a entrevista na íntegra:

Assista também nosso último bate-papo, com Márcio Santilli: As múltiplas diversidades que fazem a riqueza do Brasil

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