21/11/2025
O evento realizado nesta quinta-feira (dia 20), promovido pelo IDS no espaço ARAYARA – Amazon Climate HUB, trouxe à tona a complexa teia da justiça socioambiental na Amazônia. O documento O Poder Judiciário no combate ao desmatamento na Amazônia e reparação de danos ambientais e climáticos, a partir dos dados da Plataforma JUSAmazônia, consolidou uma análise relevante sobre a atuação do poder judiciário na região, além de uma complexidade dos processos para quem busca reparação e proteção ambiental.

O encontro, que reuniu nomes do governo, advocacia e terceiro setor, foi marcado por um tom de urgência e uma busca pragmática por soluções. “Nosso acesso à justiça é mais do que o direito de peticionar. É o direito a uma decisão que garanta segurança territorial e direitos protegidos”, afirmou Vitor Hugo, assessor do IDS e consultor do projeto JUSAmazônia, já na abertura do painel. A plataforma, idealizada com o apoio do Imazon e da NICFI, propõe-se a mapear e analisar Ações Civis Públicas (ACPs) relacionadas ao desmatamento ilegal na Amazônia Legal, utilizando jurimetria e inteligência artificial para quantificar a resposta jurisdicional. A jurimetria, que aplica métodos estatísticos e matemáticos ao estudo do direito, combinada com AI para processamento de linguagem natural (NLP) e reconhecimento de padrões, permite ao JUS Amazônia desvendar tendências, identificar gargalos e avaliar a efetividade das decisões judiciais em um volume massivo de processos.
André Lima, um dos idealizadores do JUS Amazônia e hoje secretário nacional na Secretaria Extraordinária de Controle do Desmatamento Ordenamental e Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, compartilhou a gênese do projeto. A ideia surgiu em um momento de descrédito das políticas ambientais do governo anterior, que levou ao desmantelamento de órgãos de fiscalização e à fragilização da legislação, o que impulsionou a aposta no legislativo e, principalmente, no judiciário como última instância de proteção. Ele destacou o Judiciário como uma “caixa preta” sem dados práticos sobre as ações ambientais, uma lacuna que o JUSAmazônia, com suas 16.600 ACPs identificadas e em análise, tenta preencher, revelando, por exemplo, a disparidade de sentenças e a morosidade em diferentes regiões.
Patrícia Cruz, procuradora-chefe da Procuradoria Federal no Estado do Pará, trouxe a perspectiva da Advocacia-Geral da União (AGU), que atua na responsabilização de infratores ambientais. Ela corroborou a visão de que o judiciário, por vezes, é o “nosso recurso para que o Estado consiga implementar determinadas políticas”, especialmente quando há resistência ou inação de outros poderes.
A AGU, através de iniciativas como a Força-Tarefa em Defesa da Amazônia e, mais recentemente, o AGU Recupera, expandiu sua atuação para todos os biomas. A Força-Tarefa, criada em 2019, foca especificamente em ilícitos na Amazônia, enquanto o AGU Recupera, mais abrangente, busca a reparação de danos ambientais em todo o território nacional. Patrícia detalhou a estratégia: ajuizamento de 452 ações com 901 réus desde 2019, buscando mais de 7 bilhões de reais em valores de causa – que incluem indenizações por danos ambientais e custos de recuperação – e a recuperação de 420 mil hectares de áreas degradadas, o equivalente a cerca de 420.000 campos de futebol. Os pedidos liminares (decisões provisórias e urgentes) incluem a suspensão de incentivos fiscais e o crucial embargo judicial de atividades, que, segundo ela, é mais eficaz que o administrativo. Enquanto o embargo administrativo pode ser mais facilmente contestado ou ignorado, o judicial tem a força coercitiva do tribunal. “A taxa de deferimento de pedidos de indisponibilidade de bens é de aproximadamente 50%”, revelou, enquanto o embargo judicial possui uma taxa significativamente superior, garantindo a paralisação imediata de atividades ilegais. O sucesso nas sentenças é notável, com mais de 80% favoráveis à AGU, mas os desafios persistem na “efetividade das ações” e na “dificuldade de citar os réus”, especialmente em áreas remotas da Amazônia, onde a logística é complexa e a evasão é comum.
Yanê Amoras, Head de pesquisa jurídica na Amazon Investor Coalition (AIC), trouxe a visão da sociedade civil e do investimento regenerativo. Começando por um desabafo sobre a xenofobia enfrentada por Belém na COP, ela alertou que “não tem uma chavinha mágica” para resolver a complexidade da Amazônia. Para Yanê, o ordenamento territorial é a base de tudo – a definição clara de uso e posse da terra é fundamental para evitar conflitos, desmatamento e garantir a proteção de áreas indígenas e unidades de conservação. A advocacia popular, com advogados “no território, entendendo a realidade, sofrendo junto com as comunidades”, é fundamental, pois garante que as particularidades culturais e sociais sejam consideradas nos processos.
A AIC lançou uma rede jurídica para “incomodar” o judiciário. “Muitos juízes não julgam esses processos porque não têm incentivo, não têm meta ou por questões de segurança”, criticou, referindo-se à falta de especialização em direito ambiental, à sobrecarga de trabalho e, crucialmente, às ameaças e riscos de vida enfrentados por juízes que atuam contra grandes interesses econômicos ilegais na região. A aliança busca estratégias para pressionar o judiciário, pois, segundo Amoras, eles têm “muita responsabilidade na situação atual” da Amazônia.
O debate culminou com uma pergunta profunda de Marta de Lima, mulher indígena: “Vocês veem a natureza como sujeito de direito e como ela se encaixa em toda essa leitura?”. A questão aborda o conceito de que ecossistemas e elementos naturais (rios, florestas) podem ter personalidade jurídica e, portanto, direitos próprios, podendo ser representados em juízo.
A questão dividiu os painelistas. Vitor Hugo e Patrícia Cruz reconheceram a importância da perspectiva, com Vittor destacando a América Latina como protagonista no tema, inspirado na cosmologia indígena, que vê a natureza não como recurso, mas como parte integrante da existência. Patrícia defendeu a necessidade de “sair do utilitarismo” – uma visão que enxerga a natureza apenas por sua utilidade para o ser humano – para entender que se preserva o meio ambiente “porque ele é o meu habitar”, um shift para uma ética ecocêntrica.
André Lima, contudo, trouxe o contraponto pragmático. Embora reconhecesse a “beleza filosófica da ideia”, questionou a efetividade prática no Brasil. “A humanidade não está pronta para este entendimento”, afirmou. Para ele, uma mudança legislativa sem a devida capacitação do judiciário, sem a criação de precedentes e sem um arcabouço legal robusto, poderia gerar mais problemas do que soluções, como em outros países onde “juízes não sabiam julgar” após o reconhecimento da natureza como sujeito de direitos, conforme Yanê Amoras complementou. Ela reforçou a prioridade na capacidade de execução das leis existentes e na formação de um judiciário apto a lidar com a complexidade ambiental.
O evento deixou claro que, embora a tecnologia e a vontade política avancem na Amazônia, a batalha pela justiça socioambiental é um emaranhado de dados, leis, e, fundamentalmente, uma profunda reflexão sobre o lugar do ser humano e da natureza nesse complexo ecossistema. A desmistificação do poder judiciário, através de ferramentas como o JUSAmazônia, é um passo crucial para garantir que a justiça, de fato, chegue à floresta e às suas comunidades.
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