O século XXI é um século que precisa ser feminino

17/08/2021

IDS Opina com Muriel Saragoussi

Por Aline Souza – Jornalista e Comunicadora do IDS

Nossa segunda entrevistada do IDS Opina é Muriel Saragoussi, engenheira agrônoma e doutora em fisiologia vegetal de plantas pela ENSAR / França. Ecofeminismo e socioambientalismo são duas palavras que a definem e, segundo ela, mudar as relações de poder é o que garantirá nossa existência. Muriel recebeu o Prêmio Chico Mendes de Liderança Individual da Amazônia em 2002 e o Gaea Environment Award 2010 – International Visionary Award da WIFTS Foundation. Já dirigiu o CONAMA – Conselho Nacional de Meio Ambiente e foi Secretaria Nacional de Coordenação de Políticas para a Amazônia do Ministério do Meio Ambiente. Atualmente faz consultorias na área socioambiental e ativismo.

Confira!

IDS – Muriel, você poderia contar um pouco para nós como foi a sua participação na fundação do IDS e o que te motivou a integrar o grupo de ambientalistas que fundou a organização?

Muriel – Eu trabalho com a questão socioambiental desde o final dos anos 1980, quando fui pesquisadora do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e desde essa época eu já percebia que não é possível pensar no meio ambiente sem pensar nas pessoas que vivem nele. Como doutora da área de genética, percebi que o que a região precisava não era de sementes melhoradas, mas sim entender como as comunidades tradicionais faziam uso do ecossistema e como poderiam aprimorar os agrossistemas.

Depois disso, participei da construção da conferência ECO-92 como sociedade civil e naquele momento levantamos uma importante contribuição do Brasil para o socioambientalismo: a visão de que o ambientalismo sozinho não daria conta da complexidade dos problemas de nosso planeta. Era necessário, portanto, enxergar sob a ótica social. Nesse momento também me aproximei mais do pensamento ecofeminista (que já me acompanhava desde a faculdade), fui voluntária do Conselho Nacional de Seringueiros e trabalhei com Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente por seis anos.

Em 2009, no momento de fundar o IDS, havia a visão de que a gente precisava de grupos pensantes de diferentes áreas de atuação e de conhecimento, diferentes horizontes profissionais. Ricardo Young, Pedro Ivo Batista, Oded Grajew, João Paulo Capobianco, entre outros. Pessoas com consciência de que precisamos de um modelo de desenvolvimento diferenciado se quisermos dar continuidade à espécie humana no planeta e precisamos de mais mulheres nesses espaços. Sentia falta de ver mais mulheres pensando os rumos da vida coletiva e isso demanda muito esforço nosso para mudar essa questão estrutural, pois a tendência do ser humano é ir pelo caminho mais fácil, mais cômodo. Assim eu me somei ao grupo fundador do IDS.

Desde aquela época se pretendia atuar não só no campo da sustentabilidade, como também trazer o componente da política (advocacy), da vida em sociedade e pensar a sustentabilidade no contexto de uma atuação política, democrática, participativa e transparente. E daí o nome Democracia e Sustentabilidade (D+S).

IDS – O Brasil está assistindo constantemente a retirada de direitos sociais e ambientais, algo intensificado na atual gestão. Como você vê o papel da luta dos povos indígenas no contexto de reconhecimento de suas terras e do direito de nelas viverem? O que mais ameaça essa população hoje em dia?

Muriel – O contexto geral é que indígenas e quilombolas têm direitos constitucionais sobre suas terras. Desde meados do primeiro governo da presidenta Dilma (2011) e do segundo governo (2014) em diante ficou claro que o empresariado dono do dinheiro e com poucos escrúpulos tinha interesse nessas terras de populações tradicionais, em especial na Amazônia. No Centro-Oeste há a disputa pela terra no sentido agrícola, já no Norte o interesse é principalmente de apropriação de novas terras ricas em recursos naturais, além da exploração de madeira e da mineração que estão presentes nessas terras.

Nesse sentido, indígenas e quilombolas são comunidades atacadas diretamente pela via da Constituição. Para todo o restante dos retrocessos que temos visto é possível “passar a boiada”. Mas no caso dos indígenas não. Então, quem tem interesse nessas terras precisa atacar diretamente a Constituição ou o entendimento que se tem dela, como é o caso do marco temporal no PL 490 que está no Supremo.

[O Projeto de Lei 490/ 2007, que altera a legislação da demarcação de terras indígenas, trata do marco temporal e prevê que só poderão ser consideradas terras indígenas aquelas que já estavam em posse desses povos na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, passando a exigir, dessa forma, uma comprovação de posse, o que hoje não é necessário. O texto ainda flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras indígenas por garimpeiros].

Esses ataques são mais evidentes no governo de Bolsonaro. Antes eram pressões mais sutis. Dilma fez muito pouco pela demarcação de terras indígenas. Com Michel Temer já começa uma costura com o setor do empresariado sem escrúpulos e com os deputados e senadores eleitos a serviço desses empresários. A partir de então, mudanças graves na Constituição começam a acontecer. Visivelmente tentam ganhar tanto no Legislativo quanto no Judiciário, compram lideranças, investem dinheiro em formas de criar rixas entre os povos indígenas, dando a ideia de que há uma cisão entre os indígenas “originais” e aqueles que querem viver como os brancos.

A identidade indígena inicialmente era escondida, depois de 1988 com a Constituição ela passou a ser uma garantia de sobrevivência. Agora tentam construir uma imagem para o povo brasileiro de que os indígenas desejam ser empresários do garimpo e do agronegócio. Na verdade não é isso.

Minha experiência me mostrou que os índios têm uma ligação diferente com a terra. Se tirarmos isso deles, amputamos uma parte importante do seu ser. A estratégia deles então é fazer ameaças uma atrás da outra para obrigar as populações a se ausentar de seus territórios, pois sabem que os indígenas não possuem recursos para acampar em Brasília resistindo por muito tempo em defesa de seus direitos. Em suas terras eles vivem bem, mas no mundo dos brancos o que os move é o dinheiro. Então, ocorrem tentativas de exaurir as forças dos povos no seu dia a dia. Querem quebrar os índios de todas as formas possíveis.

“Essa estrutura se criou, cresceu e se mantém através da colonização da mulher, de populações originárias e suas terras e da natureza, que é gradualmente destruída”, defendem as autoras no livro EcoFeminism.

IDS – Como podemos desmentir a falácia do agronegócio como solução econômica para o Brasil, em sua opinião?

Muriel – Não é o agronegócio que coloca alimentos na mesa dos brasileiros. Temos dados claros sobre a produção de alimentos no Brasil, 78% do arroz disponível para o consumo interno no país não vem do agronegócio, mas sim da agricultura familiar. Também não é o agronegócio que gera emprego no campo, sabemos que 70% da mão de obra no campo tem origem na agricultura familiar.

O agronegócio é uma atividade econômica de exportação pensada dentro da lógica de gerenciamento de empresas. Não existe um gerenciamento social para lidar com a terra, as pessoas trabalham por safra, por sazonalidade. O patrão que contrata o faz por temporadas. Depois disso, os trabalhadores é que se virem. Isso significa dizer que no pensamento da monocultura, o trabalhador é mais um recurso a ser explorado. A riqueza que o agronegócio gera não é para o país, é para o sistema bancário e para as pouquíssimas famílias que operam essa atividade agroexportadora. O número alto de isenções de impostos do agro nos permite afirmar que esta é uma atividade que não contribui para o bem estar social do país. A agroindústria ainda gera empregabilidade, mas muito abaixo do que se propagandeia como solução para a economia do Brasil.

Já a agricultura familiar é também uma cultura e o agronegócio quer se apropriar dela. Se olharmos com mais atenção para o MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, para o MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores ou para o Movimento das Mulheres Camponesas, vamos ver que a relação com o território é diferente. Esses grupos não querem exaurir o terreno, mas sim implementar a transição para a agroecologia, práticas de manejo, utilizar produtos sem veneno e sementes naturais (não transgênicas).

Recentemente o MST anunciou que está captando dinheiro na Bolsa de Valores. Qualquer pessoa poderá comprar os títulos a partir de $100,00 com remuneração pré-fixada em 5,5% aa que será paga com o lucro da produção das sete cooperativas do MST. Ou seja, uma ação para a sustentabilidade financeira do movimento sem perder a sua identidade, promovendo a industrialização de seus produtos agroecológicos com uma visão coletiva de famílias que se preocupam com quem vai comer o alimento que produzem, mantendo o equilíbrio do ambiente em que vivem.

Vemos, portanto, uma forma de relação diferente daquela onde a mão de obra é um recurso descartável para o negócio. A agricultura familiar não é contra o uso do trator, mas é contra usar o trator e tirar o sustento de centenas de pessoas que trabalham no campo. O trator, nesse caso, é uma ferramenta que pertence à cooperativa. Agrega valor ao produto para que todos vivam bem. É outra filosofia. É necessário que o país invista mais na agricultura familiar com apoio real, pois os bancos não facilitam o acesso a crédito para eles.

IDS – Alguns pesquisadores já comentam o ponto de não retorno da floresta Amazônica em uma previsão de 10 anos. Estamos muito próximos de um iminente colapso ambiental que tem total relação com o capitalismo e o modelo de sociedade que estamos inseridos. Na sua visão, é possível existir uma transição econômica ampla e global motivada por essa consciência? 

Muriel – Infelizmente os passos estão lentos nesse sentido, os grupos que tentam fazer essas mudanças na prática são constantemente encurralados pelo sistema. Tanto nas correntes de pensamento da direita, quanto da esquerda ainda não existem as bases para essa transição acontecer. Um exemplo: supondo que os explorados do capital venham a substituir os exploradores em algum momento. E aí? Eles vão explorar quem? As mulheres e negros – esta é uma visão antiga da esquerda. A luta de classes clássica como estudamos não é suficiente para explicar a relação do sexismo e a destruição ambiental de nossa relação com a natureza. Temos projetos piloto: experiências de cooperativas do MST, agroecologia coletiva, bioeconomia ou o agroextrativismo. Mas o que se faz ainda não tem a escala que desejamos, ainda é muito marginal.

Alguns exemplos que posso citar são a criação de Pirarucu (ou o bacalhau da Amazônia) na reserva extrativista do médio Juruá vendido nos supermercados da região sul e sudeste do Brasil, planos de manejo de madeira comunitário, o cultivo do Café Apuí que é agroflorestal ou ainda o Guaraná de Maués plantado pelos índios. Precisa de investimento nessa área. O custo do produto ilegal é muito barato e isso aniquila as experiências pioneiras daquilo que deveria ser feito. É preciso que exista de um lado a legislação para coibir o que é ilegal, e de outro o apoio firme aos agroextrativistas e pequenos agricultores.

Sugiro conhecer algumas experiências no site https://idesam.org/  de produtos da bioeconomia. Precisamos criar ilhas de sanidade com possibilidades diferentes que sobrevirão ao caos e que possamos nos reconstruir a partir de novas bases. Foi um erro o Brasil não investir em industrialização, em tecnologia e em ciência para o futuro e se manter como um país fornecedor de matéria prima. Assim há menos capacidade de sair dessa dependência.  

IDS – O ecofeminismo é vertente do movimento feminista que conecta a luta pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres com a defesa do meio ambiente e sua preservação.

Você poderia explicar para nós, por favor, como a crise climática afeta as mulheres? Qual a contribuição que a linha de pensamento do Ecofeminismo tem a oferecer para uma possível transição de matriz econômica? Você poderia nos citar alguns exemplos práticos?

Muriel – O ecofeminismo é uma matriz de analise da realidade, é um óculos que permite a gente enxergar a complexidade de relações na sociedade patriarcal em 5 pilares: o primeiro é o sexismo (a dominação do sexo masculino sobre o feminino), o segundo o racismo (dominação do brando de origem europeia sobre todos os outros seres humanos), o terceiro a exploração de classe (a dominação dos donos dos meios de produção e do capital financeiro sobre os trabalhadores), o quarto é o especismo (a dominação da espécie humana sobre as outras espécies) e o quinto a destruição ambiental (a dominação da espécie humana sobre o ambiente natural). Esses são os pilares que precisam ser modificados para que possamos também mudar relações de poder. Portanto, é uma matriz de análise da realidade.

Quando observamos como se organiza o agronegócio em contraponto à agricultura familiar campesina, podemos perceber claramente essas questões. Na Amazônia, quando falamos de agricultura familiar devemos considerar todos os extrativistas (produção indígena e a produção dos quilombos). Atualmente quem está ocupando a gestão das cooperativas do campesinato são jovens e mulheres assumindo o ecofeminismo como óculos, uma lupa que as guia. Está acontecendo uma mudança que é de relação de poder. O século XXI é um século que precisa ser feminino, dentro da relação mais igualitária de poder entre os seres humanos e com natureza e outras espécies.

Por que as mulheres sofrem mais com as mudanças climáticas? São as mulheres que ainda precisam se preocupar quando falta água dentro de casa. Apenas a existência de cisternas no quintal faz com que as mulheres recuperem de 4 a 5 horas de vida por dia, como se viu em experiências no nordeste do Brasil. Estamos falando do grande problema sobre a escassez de tempo feminina e o fato de que as mulheres são sobrecarregadas. Ou seja, o trabalho do cuidado ainda é uma exclusividade das mulheres. O número de divórcios no tempo da pandemia aumentou, assim como a violência doméstica. Se não olharmos a questão de gênero para todas as políticas públicas, vamos perpetuar relações de poder que não são saudáveis e que geram desigualdades sociais. Precisamos criar uma nova geração de filhos que tenham essa compreensão muito evidente. Assim criaremos novas sociedades, novas famílias.

Se chegarmos juntos lá na frente, no futuro, será difícil andar para trás. Tudo que se constrói coletivamente é mais difícil de destruir. Avanços conquistados são avanços consolidados. Não existem salvadores da pátria, ainda que possam ser construídos como símbolos já que somos um país grande e diverso, ainda assim precisamos que as pessoas se identifiquem com ele ou ela. Mas, se o símbolo não for profundamente democrático e conectado às suas raízes, ele será um símbolo frágil e que não servirá ao avanço da humanidade mais justa, igualitária e sustentável.  Precisamos de uma visão mais política sobre o significado da sustentabilidade, ou seja, um programa de governo que assuma a complexidade que precisamos dar conta para avançar no século XXI.

Lidar com a água, o campo e a floresta é de uma complexidade inimaginável. O ribeirinho sabe lidar com tudo isso, ainda que seja analfabeto. Nosso povo, os brasileiros não são seres de capacidade mental reduzida. Tudo se resume a palavras simples. Realidade e prática. Ser complexo não significa ser incompreensível.

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