Caminhos para construir juntos o futuro que queremos

31/05/2022

IDS Opina com Alexandra Reschke

Por Aline Souza – Jornalista e Comunicadora no IDS

Estamos de volta! Este é mais um IDS OPINA, série de entrevistas com Associados do IDS. Após um longo período de pausa institucional, este mês de maio conversamos com Alexandra Reschke, que é arquiteta e urbanista, autora do livro A flor da Cura, atuou por mais de 30 anos em políticas públicas na área de gestão urbana e ambiental, com ênfase na política habitacional de interesse social e no planejamento urbano integrado tanto em organizações públicas como também em consultoria pela Artear – Arquitetura Relacional. Atualmente se dedica a compartilhar suas experiências por meio de círculos de cuidados e crescimento abordando temas da saúde e arquitetura em construção coletiva.

Confira!

IDS – Sabemos que é urgente para nossa sobrevivência enquanto espécie uma mudança de modo de vida e de cosmovisão para lidar com tudo aquilo que conhecemos e fazemos até então. Se levarmos em conta que a grande maioria da população brasileira vive hoje nas cidades, pergunto a você: qual é o problema ou os problemas das cidades brasileiras hoje? No formato em que funcionam e foram desenvolvidas, as cidades estão fadadas ao fracasso? Qual é o caminho para a gestão sustentável dos recursos naturais e o enfrentamento das desigualdades sociais e das mudanças climáticas?


Alexandra: Temos que lembrar da origem das cidades nos tempos medievais, eram cidades que foram construídas para serem capazes de defender seus integrantes de outros cidadãos que chegavam em situação vulnerável por viverem uma vida no campo, portanto alijados dos privilégios de quem dentro das cidades vivia. Eles foram se juntando, estabelecendo relações de trocas e escambos. Até então a relação financeira era o mercado comunitário. Com isso o capitalismo primitivo vai evoluindo e então chegamos até a Revolução Industrial, a Era Fordista que inaugurou o cenário de mão de obra barata especialmente a feminina. Esse modelo foi sendo disseminado mundo afora especialmente em função da economia criando cidades insustentáveis cujo interesse era a produção e o consumo em massa, ficando muito distante do que são as necessidades humanas. Um exemplo é a priorização do automóvel e não o transporte coletivo. O crescimento das populações urbanas ocupa as áreas como encostas. Surgem as favelas, as políticas urbanas não olham para isso, pois tudo que interessa são os interesses da burguesia. Não existem políticas sociais que dão conta das contradições impostas e as lutas sociais começam a surgir. Sabemos que por vontade própria dos governantes nenhuma política social inclusiva aconteceu na história humana.

Então a urbanização das cidades em nome do progresso vai tapando os rios e as enchentes começam acontecer. Os rios foram desconsiderados e escolheu-se culpar a chuva. O meio ambiente e a ampla maioria da população são lesados por essa forma insustentável de vida na construção das cidades. Mas existem novos modelos de ocupação urbana estabelecendo uma relação mais respeitosa entre seres humanos e recursos naturais. Essa é a lógica das Small Cities, que são cidades menores com mais condições de diálogo e voz entre seus membros. A Agenda 2030 pautou o olhar dos recursos findáveis e propôs uma mudança radical nessa forma de crescimento e desenvolvimento que não está atrelado a crescer e crescer sem limites. A Europa tem adotado esse modelo em algumas cidades. Na Alemanha, por exemplo.

Posso citar o modelo de “Rosquinha” que parte da premissa onde o círculo interno representa a prioridade de tirar as pessoas da pobreza, fornecer o mínimo de um padrão digno para viver. E o círculo maior representa o limite máximo de crescimento e expansão, traçando até onde vai a ocupação e a geração de demandas. Há soluções e ideias, o que falta é vontade política e consciência dos moradores por essa opção. Nós podemos sair da escassez, a natureza é abundante, tem para todos. O que não dá mais é a lógica da acumulação, o consumo desenfreado, o desperdício.

Fazer a transição desse modelo de cidades não acontece da noite para o dia, mas as pessoas cobram essa postura da gestão pública em outros países. Existe participação social. No horizonte de 10 a 20 anos sim é possível. Os políticos precisam gerenciar para além de seus mandatos, nos preocupar com a qualidade dos governantes é importante também. Todos precisam ser envolvidos no processo, atores públicos e privados. Mas veja o que os veículos de comunicação estão comunicando para a população? Não estão mencionando isso. A qualidade dos governantes e do pensamento geral da população passa por ali.

IDS – Pensando na gestão urbana, como é possível aprimorar a governança política federativa brasileira e a capacidade de atuação dos entes municipais?

Alexandra – O caminho é pensar em bairros, cidades menores, estrutura do encontro, mobilizar os atores locais de diferentes classes sociais, a juventude que está ávida por participar, os mais velhos, conseguir fazer um processo de horizonte menor promovendo mini conferências para pensar juntos o melhor futuro para esse cenário de cidadania. Refletir sobre os serviços que são prestados. Fomentar essa participação da diversidade presente e criar os meios comunitários de comunicação. Qual é o melhor futuro que devemos construir? As decisões sobre ele começam agora. Precisamos encontrar aquilo que podemos fazer de diferente até que outra lógica e outra cosmovisão global surja de modo amplo, o que inclui o nosso Pacto Federativo. Qual agenda de desenvolvimento queremos?

IDS – Alguns números do Brasil em 2020 dão conta do impacto da pandemia no país: 18,8% é a estimativa da taxa de desemprego média, com busca por emprego constante; 1,38 milhão (3,8%) são de estudantes de 6 a 17 anos que não frequentavam a escola; 4,12 milhões de estudantes não receberam nenhuma atividade escolar durante o período de ensino remoto e mais da metade da população (55,2%) foi atingida em algum grau de insegurança alimentar.

Com sua ampla experiência em planejamento urbano e política habitacional, qual é a sua visão sobre as favelas, o crescimento da pobreza nas comunidades por todo país e o aumento da população de rua?

Pensando nos valores do IDS de unir democracia e sustentabilidade para enfrentar esses problemas, como esses dois valores podem transformar a realidade das periferias e comunidades vulneráveis?

Alexandra: Não temos uma solução mágica, mas a educação é um caminho, ou seja, mostrar como isso é possível nas escolas através dos professores, da equipe docente, da egrégora escolar e dos alunos, a partir disso entrar nos pais e nas casas das famílias. Ou seja, empoderar e dar consciência para as famílias. Ter a escola como processo de mudança, como sementes que vão dar belos frutos. Democracia e Sustentabilidade.

Precisamos nos posicionar contra a esta proposta de homeschooling/ do ensino em casa, pois a intenção da ultra direita é desobrigar o estado a cumprir o seu papel na área da educação. Em outros contextos como na Colômbia foi escolhido um processo de educação a partir das famílias, com início, meio e fim. A comunidade se organiza de forma que os talentos de pais e mães em determinados períodos possam garantir que as crianças tenham aulas em casa, para várias crianças em uma comunidade dentro de uma pedagogia pactuada e organizada. É coletivo. A ideia de educação comunitária é diferente do homeschooling dos governos conservadores.

Vejo as favelas como um problema nosso, de todos nós. Se tenho muito lençol, alguém está sem lençol. O problema da exclusão social e da concentração de renda não vai melhorar nesse cenário onde existe o topo da pirâmide. Não existe saída para isso sem uma Reforma Econômica ousada e comprometida com o compartilhar do bolo como resultado da produção social. A população de rua não está naquela situação porque quer, salvo as exceções de doença mental e alcoolismo, muitos estão ali levados por uma situação de exclusão da cidade gerada pela economia do Capital. A renda mínima universal poderia ser um caminho para tirar o povo da miséria e promover a distribuição do bolo para reduzir a desigualdade.
Onde isso começa a mudar? Na escola e no investimento na formação de professores. É preciso, inclusive, uma mudança plena por meio do empoderamento dessa profissão, ter salários dignos para esses profissionais, honrar essa população de educadores. Nós somos um país que tem cultura rica, seríamos muito piores se não tivéssemos a bagagem indígena e afro descente, isso é um ativo do Brasil que precisa ser mais valorizado. É uma pena que a palavra “Amor” saiu da nossa bandeira de inspiração positivista – que erro! Era o início de tudo. Ordem para organizar a sociedade e Progresso como fim. Isso vai na direção de outro lugar. Defendo resgatar o Amor em nossa bandeira!

IDS – Hoje existe todo um universo de inovação, empreendedorismo, voltado para a noção de cidades mais inteligentes, ao passo que fala-se muito no conceito de Bem Viver e na necessidade de desenvolver um olhar coletivo para a vida comum. No fazer junto. Parece que são duas ideias que conflitam. Assim como a imunidade contra a covid-19 deve ser global, uma mudança de rumo a nível local também deveria ser. Você acredita que somos capazes de construir uma sociedade com vida digna, feliz e sustentável para todos (local/ nacional e globalmente)? Como você enxerga essas tecnologias dialogando com as questões reais da vida nas cidades e sua possibilidade de promover transformações em escala?

Alexandra: O conhecimento e a consciência andam juntos. Há mais de uma década algumas mudanças começaram a acontecer na América Latina, comunidades pequenas nutridas pela cosmovisão indígena, reconhecendo a sabedoria dos antigos, eram lideradas por mulheres e homens sábios que começaram a descer das montanhas e se misturaram em convivência com as pessoas das comunidades. A ideia do Bem Viver vem daí, fora da lógica branca. É algo que aprendemos com as tribos africanas e indígenas. Conhecimento ancestral dos povos originais. É preciso olhar de frente e reconhecer que erramos muito até aqui em negligenciar isso. Ter curiosidade para conhecer e aprender com esses povos é nossa saída.

A tecnologia não pode servir para a exclusão. O século XXI faz parte dela. É inegável. Se existe o fogão, vamos usá-lo com responsabilidade. A tecnologia pode ajudar muito na evolução humana se ela tiver uma visão humana e solidária com esse uso e não a tecnologia pela tecnologia em si. Não vamos jogar no lixo esse processo que é parte do desenvolvimento humano sem adquirir consciência do limite que devemos adotar. Precisamos nos perguntar: isso faz bem para mim e para os demais? A desigualdade no acesso às tecnologias passa por um processo de educação desenvolvido antes. Do contrário, as pessoas ficarão reféns de tecnologias e elas não servirão para as transformações em escala, mas sim para controlar as pessoas e torná-las domesticáveis. Mundo em colapso.

IDS – O mais recente lançamento do IDS, as 24 propostas para revisão do nosso Pacto Federativo, sugere, entre outras medidas, a necessidade de formular e implementar uma estratégia nacional de recuperação econômica sustentável. Somos 26 Estados; 1 Distrito Federal e 5.570 Municípios. Além disso:

  • 500+ consórcios públicos intermunicipais registrados em 2022;
  • 235 Comitês de Bacias Hidrográficas registrados em 2018;
  • 74 Regiões Metropolitanas registradas em 2021;
  • Ao longo da última década, a União ficou com mais de 53% da arrecadação tributária do Estado brasileiro;
  • Cerca de 82% dos municípios brasileiros possuem índice de receita própria inferior a 10%.

Como o planejamento urbano e a política pública podem ser indutores de processos de desenvolvimento econômico localmente?

Alexandra – Percebo que é urgente a revisão da dívida pública como providência a ser tomada já! A quem interessa não fazer uma auditoria da dívida pública? Criar outras visões de recursos dentro de uma reforma tributária responsável, ousada, corajosa e ética. A conta dos entes federativos e União não fecha. Não dá para ter 10% dos recursos em mais de 80% dos municípios do Brasil e a União reter grande parte das riquezas. Desconcentrar as políticas públicas do governo federal, ter a responsabilidade distribuída, essa foi uma luta de nossa sociedade na Constituição Federal, mas o dinheiro não veio junto. Movimentos constituintes que conseguiram trazer mais protagonismo para os entes municipais, não conseguiram evitar que os recursos fossem concentrados, isso gera uma estratégia negativa de acordos nos períodos eleitorais, o orçamento secreto no Centrão, por exemplo. Isso é cínico. Precisamos superar isso. O prefeito é o cara com o pires na mão ano a ano na Marcha dos Prefeitos em Brasília, uma romaria por remédios na prateleira dos postos de saúde, para construção de hospitais e pontes etc. Precisamos, portanto, descentralizar a ação e os recursos.

Para você democracia e sustentabilidade, o que é?

É o reforço da política cidadã, de você ter condição de mobilizar os diferentes atores para que, na esfera do encontro, ter a decisão do melhor futuro para os integrantes das cidades ou bairros. Como me tornar protagonista desse fazer e dessa construção? Havendo fiscalização popular na realização. Não só demandando. Esta é uma proposta de seguirmos juntos.

Referências:

Pacto Federativo: Municípios para a Agenda 2030 – Diretrizes para o aprimoramento do federalismo brasileiro

A Flor da Cura – para adquirir o Livro de Alexandra Reschke acesse aqui

Le Monde Diplomatique – O gatopardismo é definido como “a filosofia ou estratégia política de defender mudanças revolucionárias, mas na prática apenas modificar superficialmente as estruturas de poder existentes”. Cooptou-se o conceito de economia verde, algo que o capitalismo é mestre, fez-se isso com o feminismo e as pautas do movimento negro por exemplo.

Cooperação Brasil-Alemanha para Desenvolvimento Sustentável

Small Cities

Leia outras entrevistas de quem já passou por aqui: IDS OPINA

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