27/01/2025
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Caetano Sacannavino, um dos gestores do Projeto Saúde e Alegria, que tem mais de 40 anos de Amazônia, conversa com a equipe do IDS sobre ativismo, comunidades, tecnologias sociais, políticas públicas e a COP 30.
O ano de 2025 tem um caráter muito especial para a Amazônia e para as pessoas e organizações que militam pela preservação ambiental e cultural da região. A COP 30, que vai acontecer em novembro em Belém já movimenta o país e amplia o debate sobre as questões climáticas, de uma economia de base florestal e biodiversa, e na busca de modelos de desenvolvimento não apenas baseados na preservação, mas essencialmente na regeneração do bioma amazônico.
Um dos personagens mais ativos nos debates sobre a Amazônia, não apenas no Brasil, é Caetano Scannavino, que desde o final dos anos 1980 trabalha junto a seu irmão, o médico Eugênio Scannavino em um dos mais importantes movimentos de ação comunitária e de experimentação em políticas públicas junto a comunidades ribeirinhas na região de Santarém, no Oeste do Pará, o Projeto Saúde e Alegria.
Caetano é associado ao IDS e recentemente recebeu o convite para fazer parte do Conselho da organização. Ele reconhece no IDS uma entidade que produz estudos de alta qualidade e relevância, e que pode apoiar a ação de organizações com ação no território e carentes de conteúdos técnicos. Um exemplo é a própria Saúde e Alegria, organização da qual ele é um dos gestores, que atua diretamente no campo com experimentações em políticas públicas em benefício de populações ribeirinhas, indígenas e quilombolas.
“O Saúde e Alegria foi criado a partir de uma experiência do Eugênio, que é médico, para ajudar no atendimento em saúde da família”, explica. Dessa experiência veio a certeza de que os problemas de saúde enfrentados na região do rio Tapajós não podiam ser combatidos apenas com medicamentos, era necessária uma ação mais abrangente, conectando educação, saneamento básico, oferta de água potável, alimentação e cuidados em saúde.
Um paulistano na Amazônia
“Eu fui para a Amazônia em 1988 e, como todo paulistano, acreditava que sabia muito e ia lá para ensinar”, conta. Ele explica que, na época, seu irmão Eugênio já estava lá e esperava que sua estada fosse de cerca de seis meses, um sabático. “Essa viagem já dura quase 40 anos e eu ainda estou aprendendo coisas com as pessoas da Amazônia todos os dias”.
As belezas e as pessoas
Caetano conta que foi descobrindo que a Amazônia é uma fonte inesgotável de aprendizado, de coisas que às vezes o cara está há três anos tentando provar no mestrado e, se ouvir um minuto numa roda de conversa, numa comunidade, esse aprendizado fica transparente. “A gente vê coisas e aprende de um jeito que nenhuma academia consegue”, explica. “O que me pegou na Amazônia foram as pessoas”, conta. Ele explica que apesar das belezas naturais, foi a visão de mundo da gente da região que capturou sua alma.
“A gente sai da cidade e vai para a Amazônia pensando que vai ensinar alguma coisa e descobre que não sabe nada”.
Caetano conta que a primeira coisa que entendeu é que São Paulo precisa muito da Amazônia, mas a Amazônia não precisa de São Paulo para nada. Nas barrancas do Tapajós conheceu pessoas incríveis, capazes de tirar do pouco que têm para ajudar a quem aparecer por lá. “Esse tipo de coisa foi o que me prendeu, e também a possibilidade de trabalhar na Amazônia, com gente debaixo da floresta, porque debaixo da floresta tem gente”, conta.
Com saúde e alegria
“Trabalhar com o pessoal do Saúde e Alegria é uma das coisas mais importantes da minha vida, quando eu cheguei em 1988 meu irmão já tinha fundado a ONG e começado a atender as comunidades ribeirinhas”, conta Caetano. Grande parte das doenças eram de veiculação hídrica, relacionadas a falta de água potável e lançamento de esgoto não tratado. “Tem soluções simples e que muitas vezes são abandonadas sem muita justificativa”, explica e conta que a reintrodução dos filtros de barro nas comunidades foi quase milagrosa com a redução das diarreias nas crianças.
“O Saúde e Alegria” tem trabalhado ao longo dos anos com experimentações em políticas públicas”, explica. Uma das ações mais importantes foi quando a organização ficou como depositária do Abaré, um barco hospital que iniciou o trabalho de atendimento dos ribeirinhos com apoio das prefeituras da região e do SUS. “ O barco hospital – primeira embarcação do País qualificada pelo Ministério da Saúde como Unidade de Saúde da Família Fluvial – chegou a atender 72 comunidades e 13 mil ribeirinhos dos municípios de Aveiro, Santarém e Belterra.
“O resultado desse trabalho iniciado pelo Saúde e Alegria foi tão bom que. Em 2010, o Ministério da Saúde adotou o modelo como uma política pública. O Programa Saúde da Família Fluvial para toda a região Amazônia e Pantaneira”, diz Caetano, e explica que hoje já são mais de 100 barcos navegando pelos rios da Amazônia e do pantanal fazendo atendimento pelo SUS. O Abaré foi repassado para a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e se tornou uma unidade escola e de pesquisa.
Saúde, alegria e comunidades
Caetano define o trabalho comunitário desenvolvido pela ONG como um ponto de partida, um pontapé inicial para a introdução de inovações em energia renovável, restauração florestal, bioeconomia, turismo de base comunitária, artesanato da floreta e outras iniciativas. “Depois que está funcionando a gente se afasta, porque o importante é empoderamento da comunidade, criar a autossuficiência”, explica. Mas, nem só de trabalho vive a organização, tem a alegria, que se manifesta no Grande Circo Mocorongo, TV Mocoronga a rádio Mocoronga o Jornal Mocorongo. “São projetos de inclusão pela alegria, que aproxima jovens e que produz muitos conteúdos e eventos”.
“Depois que está funcionando a gente se afasta, porque o importante é empoderamento da comunidade, criar a autossuficiência”
O importante, segundo Caetano, é trabalhar dentro do contexto das comunidades, respeitando sua cultura, seus tempos e a forma como os aprendizados conseguem se enraizar e transformar a forma como fazem algumas coisas. “O modelo convencional de chegar um médico, examinar, dar uma receita e mandar embora não funciona nessas comunidades”, explica. Ele conta que algumas vezes passam dias em comunidades atendendo, conversando e fazendo festa à noite para repassar tudo o que foi trabalhado durante o dia. “A gente cria uma empatia alegre, que explica do mesmo jeito que eles contam suas histórias”. Com isso a comunidade se torna parceira nas soluções. Seja na área de tecnologias sociais, como a produção de água potável e cuidados com o saneamento, na prevenção de doenças ou em qualquer outra ação, que sempre são realizadas de forma coletiva.
Experiências que viram políticas públicas
Grande parte das experiências e atividades realizadas pelo Saúde e Alegria nas diversas comunidades em que atua, em cinco municípios da região de Santarém, está se multiplicando como políticas públicas no modelo copia e cola. Isso está sendo feito com tecnologias de acesso a água de saneamento, com microssistemas fotovoltaicos de abastecimento de água que são implantados coma participação da comunidade e, depois, passam a ser autogeridos. “Quando a gente constrói na forma de mutirão as pessoas se percebem parte da solução”, explica o ativista. Ele conta que já há sistemas que estão funcionando há 20 anos sem que nunca foi preciso nenhuma intervenção externa. “Para nós é importante não criar uma ongdependência”.
Caetano lembra que com as transformações no regime de chuvas da Amazônia e as secas extremas dos últimos anos a questão da oferta de água potável se tornou crítica em quase todas as regiões do bioma. “Passamos a assessorar outras organizações para que apliquem tecnologias sociais já testadas por anos nas regiões onde o Saúde e Alegria atua, e vem dando muito certo”, conta. E alerta que o fato de ter começado a chover não é uma solução imediata: “Esse é o momento em que os rios voltam a encher e trazem com essa água toda a sujeira acumulada durante a seca, é o tempo das diarréias”.
Políticas públicas, políticas de estado
Uma alerta importante dado pelo ativista é que organizações sociais podem fazer experiências e ajudar na elaboração de modelos de políticas públicas, mas não podem substituir o estado. “É importante que as soluções sejam escaladas e, para isso, é preciso que o estado assuma suas responsabilidades”. Foi o que aconteceu com o atendimento de populações ribeirinhas com o barco hospital Abaré. Depois que o experimento deu certo o Ministério da Saúde assumiu o modelo e deu escala para o atendimento em caráter nacional.
“Primeiro é anunciada a vacinação só de pessoas com mais de 60 anos, depois de algum tempo, as crianças, depois todo mundo”.
O olhar do Saúde e Alegria sobre aas pessoas e as comunidades tem a característica de entender as dinâmicas da vida na floresta. Algumas críticas fazem todo o sentido pela forma burocrática como alguns temas são tratados. Caetano dá o exemplo das campanhas de vacinação: “Primeiro é anunciada a vacinação só de pessoas com mais de 60 anos, depois de algum tempo, as crianças, depois todo mundo”. Acontece que muitas vezes, para tomar uma vacina é preciso pegar um barco, gastar gasolina e viajar meio dia para chegar em um posto de saúde, aí volta para a comunidade e dias depois tem de voltar no posto para vacinar outro grupo. “É um custo que a comunidade não tem como arcar, é preciso pensar na logística dessa gente com mais cuidado e empatia”, explica.
Amazônia não é só desmatamento
“A Amazônia tem gente”, diz Caetano, tem o social, não pode ser olhada apenas sob a ótica do desmatamento. A região é uma enorme carência em infraestruturas e não só de obras, mas também de serviços. “Não vamos resolver os problemas de desmatamento se não resolvermos as questões sociais”, diz. E isso inclui saúde, educação, transporte, trabalho, financiamentos diversos para saneamento, habitação, estradas, eletrificação e tudo o mais que compõem o arcabouço de infraestruturas físicas e sociais para a qualidade de vida. “E não quer dizer que se vai adotar os padrões de São Paulo ou Rio de janeiro, mas sim que será preciso integrar as pessoas de lá na construção de suas próprias soluções e como elas vão assimilar algumas práticas que chegam de fora”.
A COP 30, que vai acontecer no final de 2025 em Belém será, segundo Caetano, uma oportunidade para a Amazônia mostrar seu jeito de ser. Para isso, segundo ele, vai ser preciso abrir espaço para o povo, e não somente em uma vitrine para “inglês ver”. Belém vai ter um desafio enorme para receber a quantidade de gente que estará na COP, os investimentos poderão preparar a cidade para o evento, mas precisam dialogar com o futuro da cidade e da região.
O alerta feito por Caetano é que as soluções prontas ou de alguma forma pontuais e assistencialistas não resolvem e muitas vezes criam mais problemas do que ajudam. Um exemplo, segundo ele é quando chegam em uma comunidade que está enfrentando uma crise de abastecimento de água e comida, porque os roçados e os igarapés secaram e dão algumas cestas básicas e alguns fardos de água mineral. “Tudo acaba em alguns dias, mas a burocracia acha que já ajudou”, diz o ativista.
A COP da Amazônia
Por mais que os governos da cidade, do estado e o federal trabalhem, vai ter problemas, vai faltar coisas, o ar condicionado vai pifar, o trânsito vai parar, não vai ter hotel para todo mundo, mas nada disso importa ao final, segundo Caetano. “O que interessa é se vamos conseguir avançar na transição energética, na criação de modelos de ajuda às populações em risco climático, nas adaptações necessárias no nosso modo de vida global e tudo o mais que será preciso para a qualidade de vida na Terra”.
Organizações sociais e empresas estarão presentes e irão trabalhar para encontrar formatos para uma bioeconomia baseada na floresta e nas pessoas que vivem nela e dela. Será preciso aprovar o financiamento climático de 1,3 trilhão de dólares e definir como ele será gasto. Será preciso encontra meios para compensar a ausência dos Estados Unidos das políticas de prevenção climática. “E uma enorme lista de tarefas”, diz o ativista. “Mas é o que temos de fazer”.
“Presidir uma COP dá ao país o direito de ser mais proativo. O Brasil terá imensas responsabilidades em organizar e em fazer com que a COP da Amazônia consiga tudo o que as COPs petroleiras de Dubai e Baku não conseguiram”, conclui Caetano Scannavino.
(IDS Brasil)
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