Crise hídrica no estado de SP perde destaque na cobertura jornalística

26/10/2015

A crise hídrica no estado de São Paulo tem competido pelo espaço nobre nas manchetes com questões políticas e econômicas. A gravidade da falta de água no estado, porém, ainda é alta e é necessário pautar a mídia de forma qualificada, afirmam especialistas e comunicadores durante o lançamento da pesquisa “Crise Hídrica e a Mídia”, no dia 15 de setembro.

Realizado pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP (IEE/USP), o estudo traz os principais resultados do levantamento e análise de 503 notícias dos jornais “Folha de S. Paulo”, “O Estado de S. Paulo” e “O Globo” sobre a crise hídrica no estado de São Paulo, de janeiro de 2014 a abril de 2015. A pesquisa tem como objetivo identificar as principais narrativas sobre a crise e compreender como a população estava sendo informada.

Juliana Cassano Cibim, coordenadora de conteúdo do IDS, e Pedro Roberto Jacobi, professor e pesquisador do IEE/USP e do IEA/USP, apresentaram as principais conclusões da pesquisa. Alguns dos destaques são:

  • Nas três fases, 7 em cada 10 atores citados pela imprensa como fontes representavam o setor público. Contudo, com o passar do tempo, os discursos se descentralizaram e outras vozes passam a ganhar espaço: ONGs, movimentos sociais e universidades. Os Comitês de Bacias Hidrográficas são pouco mencionados nas três fases.
  • A falta de chuva foi, em todas as fases, a causa mais mencionada, mas as referências à má gestão aumentam a partir da segunda fase. Desmatamento e alterações de uso do solo não receberam o devido destaque.
  • Até o início de 2015, a integração dos sistemas de abastecimento era apontada com a principal solução. Depois, o consumo e o reúso passam a receber mais atenção. Em todas as fases, a maioria das soluções apontadas era de caráter emergencial. Sete em cada 10 notícias analisadas tratavam de alguma possível solução para a crise.
  • Apenas na terceira fase, foram destacadas as ações tomadas em relação à crise. Uma em cada 5 matérias mencionava a diminuição da pressão da água. As obras de integração dos sistemas aparecem logo em seguida entre as mais comentadas. Oito em cada 10 notícias tratavam de medidas emergenciais.

 

 

O evento de lançamento, realizado no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP), contou com a avaliação de especialistas e comunicadores sobre os resultados da pesquisa, a partir de uma análise crítica.

Participaram do debate:

Ana Paula Fracalanza (USP), Guilherme Checco (IDS), Janice Kiss (jornalista), José Carlos Mierzwa (Poli-USP), Juliana Cassano Cibim (IDS), Marussia Whately (Aliança pela Água), Maria Augusta Pires Pinto (Instituto Jatobás), Pedro Roberto Jacobi (IEE/USP e IEA/USP), Rosa Maria Mancini (IEE/USP), Rubens Filho (Instituto Trata Brasil) e Samuel Barreto (TNC).

José Carlos Mierzwa, professor de engenharia hidráulica da Poli/USP, explicou que a falta de água na região metropolitana de São Paulo não é algo novo e nem recente. Desde a década de 60 a região enfrenta problemas, principalmente por estar localizada em uma região de cabeceira (lugar onde nasce o rio). A necessidade de trazer mais água foi inicialmente motivada pela indústria e depois para abastecimento da cidade em crescimento. “É sempre aquela ideia de trazer mais água para região metropolitana de São Paulo. Ou seja, falta o recurso, não importa o que está acontecendo com ele, se está tendo mau uso ou não, eu vou trazer mais água. O sistema Cantareira, que hoje sofre esse problema, foi justamente a opção que se teve na década de 70, 80 para melhorar o problema de abastecimento de água de São Paulo.Ou seja, vou trazer água do sistema Cantareira para minimizar a ocorrência ou risco de escassez para a população”, explicou.

Neste contexto, Mierzwa ressalta a importância de verificar se a comunidade consegue influenciar o governo nos processos de tomada de decisão. “Essa discussão é bastante importante também para a sociedade entender a complexidade do problema, e que problemas complexos não tem uma solução única. Ela é baseada em soluções integradas que vão da gestão até a prática do reúso”.

Para Marussia Whately, coordenadora da Aliança pela Água, a pesquisa refletiu como foi a evolução da narrativa dos jornais ao longo das três fases. No início, a voz predominante era de fontes oficiais do governo – como Sabesp, ANA e DAEE-, e em seguida, outras vozes começaram a ganhar mais espaço, como a Aliança pela Água e partidos políticos. A mesma coisa aconteceu com relação às causas apontadas para a crise, que na primeira fase apontavam predominantemente a “falta de chuvas” e, a partir da segunda fase, começava a evidenciar a “má gestão” .

“Acho que isso é muito rico do material nessa perspectiva. Não se pretende aqui, obviamente, porque não é o papel dos jornais serem aqueles que vão ter a compreensão, as propostas e resolver a questão da crise, mas sim de apresentar e divulgar qual é a narrativa que está ganhando mais força, independente de quais são as razões para essa narrativa estar ganhando mais força ou não”, afirma a urbanista.

Sobre as fontes consultadas, Ana Paula Fracalanza, professora do IEE-USP, comentou sobre o reduzido protagonismo dos Comitês de Bacia nas notícias, espaços de gestão que preveem a participação de diversos atores na gestão da água: “É chamada a atenção para isso na 1ª fase, e que vem diminuindo com o tempo. Para nós que estudamos os comitês de bacia, e que era uma grande esperança na década de 90, a gente se pergunta: como que pode, em plena crise hídrica, os comitês de bacia perderem espaço?”. Para Ana Paula, as poucas menções a soluções que podem ser tomadas pela população dificulta a mobilização das pessoas. “A falta de transparência impede com que as pessoas possam agir sobre o seu próprio cotidiano.”

Um dos coordenadores da pesquisa, Pedro Jacobi, ressaltou que pressionar por acesso à informação é um dos desafios da pesquisa e de seus realizadores. “É um desafio não só nosso, mas de todos nós, de encontrar os meios para uma perspectiva que não é de ‘catastrofizar’ a situação, mas de estimular a corresponsabilização e pressionar por mais transparência da gestão pública”.

Rosa Maria Mancini, uma das coordenadoras da pesquisa, disse que é importante ao estudo ter a visão crítica daquilo que não está presente nas narrativas dos jornais e que acabam enevoando um processo crítico que precisa ser esclarecido. Outro aspecto marcante, ela aponta, foram as poucas menções às questões ambientais. “A falta de centralidade da questão ambiental e da questão do saneamento é gritante. Aparece rapidamente a questão de proteção do manancial, rapidamente a questão do tratamento de esgoto… Isso é inadmissível se está se pensando em solução e se debatendo um problema”, disse.

Rubens Filho, do Instituto Trata Brasil, também destacou a ausência de discussão sobre saneamento, concluindo que as pautas sobre água e meio ambiente estão perdendo espaço na cobertura jornalística.

Na visão da jornalista Janice Kiss, que já trabalhou no Globo Rural e Valor Econômico, as pautas ambientais acabam competindo com uma grande quantidade de notícias sobre questões econômicas e políticas, que atraem maior atenção dos jornalistas e do público. Para ela, existe uma limitação nas redações do que é possível cobrir. “Infelizmente, temos outros graves problemas, então como antes todo mundo do jornal estava voltado para a falta d’água, agora todo mundo está voltado para o caderno de política e economia que a cada dia que você acorda e tem uma notícia ainda mais cabeluda para cobrir. Então, são problemas que não ficaram resolvidos. Eles não perderam a importância, mas perderam o espaço, a verdade é essa, para outras crises tão graves ou mais graves quanto.”

Pela maior parte de 2014, a imprensa noticiou principalmente os níveis dos reservatórios, tentando contabilizar quando seria o “dia em que faltaria água”. Samuel Barreto, da TNC, disse que foi muitas vezes procurado por jornalistas para fazer essa contabilidade e questionou porquê este dado não foi incluído nas notícias pesquisadas. Para o especialista em recursos hídricos, algo que ficou evidente a partir do infográfico foi a hegemonia das fontes oficiais do governo na pesquisa, entretanto, ele ressaltou a importância do contraponto:

“É interessante ver, talvez, o peso do contraponto de outros setores, de outros formadores de opinião, inclusive com informação dada pelo governo. A gente considera sempre a informação oficial, mas é interessante retratar outras fontes de opinião. E isso, talvez, seja uma dificuldade de contrapor dados oficiais.”

Além da necessidade de se apresentar o contraponto, Maria Augusta Pires, do Instituto Jatobás, acredita que é fundamental os comunicadores trazerem um novo olhar para a questão da água. “Um novo entendimento sobre a disponibilidade, qualidade e valor da água, não o valor financeiro, mas o valor em relação à preservação e manutenção da vida como um todo”.

Pedro Jacobi afirma que assuntos fundamentais que a mídia deve abordar são: o conceito de água e direitos humanos e também pressionar por transparência da informação. "Falta de transparência é um sinônimo de autoritarismo dos órgãos públicos", afirma.

Em suas falas, especialistas fizeram sugestões de encaminhamentos para a pesquisa, que serão consideradas na publicação de um documento síntese.

Histórico e contexto

O IDS e o IEE/USP iniciaram, em agosto de 2014, um levantamento de notícias de três jornais de grande circulação (Folha de São Paulo, O Estado e O Globo), buscando identificar os principais atores mencionados, as causas e soluções apontadas para a crise e as ações efetivamente tomadas. Foram desconsideradas no universo da análise as notícias que tratavam exclusivamente de variações dos volumes dos reservatórios.

A pesquisa foi dividida em três fases: a primeira abrange o período de janeiro de 2014 a 15 de outubro de 2014, antes do reconhecimento da crise; a segunda, o período de 16 de outubro a março de 2015, período após eleições e início do reconhecimento da crise; e a terceira, o período de março e abril de 2015, no qual começa a ser implementada a maioria das ações.

A primeira etapa do levantamento de notícias foi apresentada em novembro de 2014 durante a Mesa Redonda "Políticas públicas e escassez hídrica no estado de São Paulo: governança, transparência e alternativas para a crise", em parceria com o Data4Good e o Senac, e também contou com o debate entre especialistas. Nesta ocasião, foram destacados seis temas principais para o enfrentamento da escassez hídrica no estado de São Paulo: Governança, Gestão da oferta e demanda, Gestão da informação, Legislação, Águas subterrâneas e Uso do solo.

Confira todos os infográficos e fichas temáticas da mesa redonda  "Diferentes olhares para a crise hídrica" em: http://goo.gl/nHO6kq

O lançamento da pesquisa “Crise Hídrica e a Mídia” integra o Projeto sobre Recursos Hídricos realizado entre IDS e IEE/USP, no âmbito do acordo de cooperação técnico-científica firmado pelas instituições em novembro de 2014.

 

Confira o vídeo do evento na íntegra:

 

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